Os direitos fundamentais são princípios absolutos ou relativos? E quando há conflito entre esses direitos? Qual deles deve prevalecer? Os questionamentos foram levados, na última quinta-feira (28/1), para a 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. O caso colocou em campos opostos o direito à vida e à liberdade religiosa e envolveu recurso apresentado pela defesa de três integrantes da comunidade religiosa Testemunhas de Jeová — um médico e os pais de uma adolescente que morreu por falta de transfusão de sangue.
Para os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, o sangue é como se fosse uma digital, algo inerente a cada pessoa, que não se pode doar nem receber de ninguém. No lugar das transfusões, seus adeptos defendem tratamentos alternativos.
Em primeira instância, os réus foram pronunciados para ir a julgamento, acusados de homicídio. A turma julgadora no TJ paulista, depois de muita peleja, fez prevalecer o entendimento de que a morte da adolescente, em tese, caracterizaria dolo eventual e que os três deveriam ir a júri popular. Cabe recurso (embargos infringentes) contra a decisão com base no voto divergente do desembargador Nuevo Campos.
Os acusados são os pais da adolescente e um médico. Os três são da igreja Testemunhas de Jeová. De acordo com a denúncia, por motivos religiosos, eles impediram ou retardaram a transfusão de sangue na garota que sofria de leucemia grave. A resistência dos pais e o fato do médico religioso ameaçar seus colegas de processo judicial no caso de fazer a transfusão, teriam, em tese, provocado a morte da menina. O caso aconteceu em julho de 1993, numa cidade do Litoral sul do estado. A adolescente morreu dois dias depois de entrar no hospital.
O conflito foi resolvido pelo critério da maioria, mas com posições opostas defendidas pelos desembargadores Galvão Bruno e Nuevo Campos. O terceiro juiz, Sérgio Coelho, dirimiu a questão votando com a tese de que o fato dos réus se oporem a transfusão contribuiu para a morte da adolescente. Galvão Bruno atuou como relator do processo e destacou que o caso não tratava de causalidade fática, mas de causalidade jurídica (quando o magistrado escolhe a causa responsável pelo resultado antijurídico, fazendo ele um juízo de valor).
De acordo com o pensamento do desembargador Galvão Bruno, haveria evidências suficientes de que os apelantes se opuseram firmemente à transfusão de sangue, medida que poderia ter salvo a vida da garota. Segundo o relator, essa conduta dos réus, no mínimo, retardou o tratamento da adolescente, que veio a morrer.
“Durante todo o tempo, os genitores foram alertados de que não havia alternativa à transfusão, caso desejassem salvar a vida da filha”, afirmou Galvão Bruno. “Em resposta declararam que preferiam ver a filha morta a deixá-la receber a transfusão”, completou o relator, para quem não havia como cogitar a nulidade da sentença de pronúncia diante da prova da materialidade do fato e dos indícios suficientes de autoria e participação.
O desembargador Nuevo Campos sustentou entendimento contrário de seu colega de turma julgadora. Entendeu que o conflito estaria apontado na oposição dos pais e do médico amigo da família, tida como causa da morte da garota. A tese de Nuevo Campos foi a de que a conduta dos réus não tem tipicidade penal. Ou seja, para o revisor, não há previsão legal de qualquer efeito jurídico do consentimento ou da recusa da vítima ou de seus representantes.
Para Nuevo Campos, no caso de hipótese de iminente risco de vida para a adolescente, a recusa dos réus não teria qualquer efeito de inibir a adoção de qualquer procedimento terapêutico indispensável para garantir a vida, até mesmo a transfusão de sangue. A linha de raciocínio do revisor apontou na direção de que os integrantes da equipe médica, que atendiam a adolescente, tinham o dever legal de agir, mesmo contra a resistência da família.
Na opinião de Nuevo Campos, não há direito individual fundamental que admita exercício absoluto. Ele destacou que o status diferenciado de qualquer direito fundamental, seria também seu limite, pois essas garantias constitucionais individuais devem estar equilibradas. O revisor sustentou que, no caso de colisão de direitos fundamentais, como no do julgamento dos integrantes do grupo religioso, a solução passa pela identificação de um ponto de equilíbrio que não venha ferir nenhum desses direitos.
Para o desembargador, o reconhecimento do direito à vida como o mais importante, considerando a especificidade do caso em julgamento, não acarretaria em absoluto, na negação da outra garantia constitucional em conflito: o direito à liberdade religiosa. Ou seja, a solução para o conflito pode ser encontrada por um atalho, de modo que um direito fundamental não aniquile o outro por completo, mas que possa coexistir com o outro em harmonia. Ele considerou atípico o fato descrito na denúncia e votou pela absolvição dos acusados.
Fonte: site CONJUR
Por Fernando Porfírio
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- MARCOS COLTRI
- Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador ajunto do Mestrado em Direito Médico e Odontológico da São Leopoldo Mandic. Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.