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Advogado. Especialista em Direito Médico e Odontológico. Especialista em Direito da Medicina (Coimbra). Mestre em Odontologia Legal. Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico e Hospitalar - Escola Paulista de Direito (EPD). Coordenador da Pós-graduação em Direito Médico, Odontológico e da Saúde (FMRP-USP). Preceptor nos programas de Residência Jurídica em Direito Médico e Odontológico (Responsabilidade civil, Processo ético médico/odontológico e Perícia Cível) - ABRADIMED (Academia Brasileira de Direito Médico). Membro do Comitê de Bioética do HCor. Docente convidado da Especialização em Direito da Medicina do Centro de Direito Biomédico - Universidade de Coimbra. Ex-Presidente das Comissões de Direito Médico e de Direito Odontológico da OAB-Santana/SP. Docente convidado em cursos de Especialização em Odontologia Legal. Docente convidado no curso de Perícias e Assessorias Técnicas em Odontologia (FUNDECTO). Docente convidado do curso de Bioética e Biodireito do HCor. Docente convidado de cursos de Gestão da Qualidade em Serviços de Saúde. Especialista em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional. Diretor da ABRADIMED. Autor da obra: COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Impropriedades e ilegalidades existentes na Resolução nº 2.299/2021 do Conselho Federal de Medicina

Em 26 de outubro de 2021 foi publicada a Resolução nº 2.299/2021, do Conselho Federal de Medicina. Esta Resolução tem como finalidade regulamentar, disciplinar e normatizar a emissão de documentos médicos eletrônicos.

A análise da referida Resolução à luz do ordenamento jurídico nacional permite afirmar que o texto normativo ético está maculado de impropriedade e ilegalidade.

O Conselho Federal de Medicina, nos termos da Lei nº 3.268/1957, é uma autarquia federal, com personalidade jurídica de direito público (art. 1º), tendo como função supervisionar a ética profissional em todo território nacional (art. 2º). Por ser uma autarquia, o Conselho Federal de Medicina possui atribuições específicas, estabelecidas no art. 5º da Lei.

O conhecimento da natureza jurídica do CFM e de suas atribuições específicas estabelecidas pela própria lei que permite a existência do Conselho é de suma importância para a análise da Resolução 2.299/2021.

De acordo com a exposição de motivos da Resolução, se faz necessário (sic) a elaboração desta resolução, que visa conferir limites à relação entre as empresas de tecnologia e médicos, bem como as regras que estabelecem a geração dos atos médicos nas ferramentas disponibilizadas por empresas de tecnologia.

Ou seja, partindo da premissa de que não haveria regulamentação, o Conselho Federal de Medicina elaborou e fez publicar uma Resolução com o objetivo de impor limites à relação entre empresas de tecnologia e médicos, bem como introduzir regras concernentes à elaboração de atos médicos por meio de empresas de tecnologia.

Com a devida vênia, não cabe ao Conselho Federal de Medicina a edição de Resolução para regulamentar nem a atividade médica, tampouco a atividade de empresas que não prestam serviços médicos. De partida, a simples inexistência de tal atribuição na Lei já afastaria a competência legal do CFM para tal medida.

A regulamentação de atividade profissional no Brasil é competência privativa da União, por força do disposto no art. 22, inciso XVI, da Constituição Federal, legislar sobre condições para o exercício de profissões. Logo, como a Lei 3.268/57 não atribuiu ao Conselho Federal de Medicina a competência para regulamentar a profissão, esta autarquia federal não detém tal competência. Destaca-se que a competência para elaborar Código Deontológico em nenhuma circunstância se confunde com o poder de regulamentar a profissão, sendo certo que ao atribuir a competência para elaborar o Código Deontológico sem atribuir a competência para regulamentar a profissão, a lei implicitamente garantiu a necessidade de que todas as normas deontológicas continuam submissas ao ordenamento jurídico, sendo vedado ao CFM, como regra, regulamentar o exercício da profissão por meio de Resoluções.

De toda forma, ao iniciar a Resolução 2.299/2021 afirmando que “autoriza” a utilização de tecnologia para a emissão de documentos médicos, o CFM se apropria indevidamente de competência que não detém. A validade de documentos médicos, posto que relativa ao exercício da profissão, não é matéria de competência do Conselho Federal de Medicina, mas sim de legislação federal.

Quem atribui validade ao documento médico expedido por meio de tecnologias é a legislação federal, não o Conselho Federal de Medicina.

Em princípio, ao “autorizar” a utilização de tecnologias para a emissão de documentos médicos nos termos da lei, o Conselho Federal de Medicina não comete nenhuma ilegalidade flagrante, posto que a legislação já autoriza esta prática. Entretanto, há uma manifesta impropriedade por parte do CFM, haja vista a autorização não ser decorrente da entrada em vigor da Resolução, mas sim porque a lei permite tal prática.

Se a partir de 26 de outubro de 2021 a utilização de tecnologias para a emissão de documentos médicos está autorizada pelo CFM, os documentos emitidos com a utilização de tecnologias antes desta data eram “ilegais”? O Conselho Federal de Medicina teria competência para desautorizar a emissão de documentos médicos com a utilização de tecnologias que seguissem as disposições legais que regulamentam tal prática?

A resposta às duas perguntas é a mesma: não! Os documentos médicos emitidos antes da entrada em vigor da Resolução 2.299/2021 não são “ilegais” e o CFM tampouco teria competência para desautorizar a prática de um ato profissional disciplinado pela legislação federal.

Apenas a título de reflexão, o artigo 1º da Resolução “autoriza” a emissão de laudos e pareceres técnicos com a utilização de tecnologia (alíneas “e” e “f”). Os laudos periciais e os pareceres de assistentes técnicos elaborados, emitidos e juntados a autos de processos judiciais eletrônicos antes de 26/10/2021 estavam irregulares? É o CFM quem decide como estes documentos devem ser apresentados judicialmente? O CFM poderia condenar algum médico por infração à ética médica porque elaborou e emitiu um documento para ser juntado em autos de processo judicial antes da Resolução 2.299/2021? Evidentemente que não.

Portanto, a Resolução CFM 2.299/2021, no que tange à regulamentação da emissão de documentos médicos com uso de tecnologia, não possui nenhuma relevância concreta, posto que o exercício da profissão e a emissão de documentos profissionais são matéria de competência da União e não do Conselho Federal de Medicina.

O artigo 2º da Resolução apresenta mais uma impropriedade técnica. Este dispositivo normativo estabelece que os documentos médicos devem conter obrigatoriamente a identificação do paciente (alínea “c”).

Como é de costume em normas éticas, a Resolução CFM 2.299/2021 também parte de uma premissa secular equivocada e reiterada inúmeras vezes: sempre que houver a prestação de um serviço médico haverá uma relação médico-paciente. Isso não é uma verdade absoluta. O médico, ao contrário do que a quase totalidade das pessoas afirmam, tem cliente. O médico que atua como assistente técnico não possui paciente, mas sim cliente (a parte do processo judicial que o contratou é um cliente do médico, não um paciente). E, além de possuir cliente em algumas situações, noutras o médico exercerá o seu mister na relação com um periciando (periciado) e não com um paciente, como ocorre nas perícias.

Percebe-se, assim, mais uma gritante impropriedade da Resolução CFM 2.299/2021, posto que nos laudos e nos pareceres técnicos não haverá “paciente”, tornando inadequada a redação dada à alínea “c” do artigo 2º da Resolução. Diante deste equívoco do CFM, o perito e o assistente técnico estão impedidos de cumprir a obrigatoriedade imposta a todos os documentos médicos (art. 2º, caput).

As maiores ilegalidades, porém, estão contidas nos artigos 4º, 5º e 6º da Resolução CFM 2.299/2021.

O art. 4º da Resolução CFM 2.299/201 é ilegal, pois inclui um elemento novo para a validade de documento assinado eletronicamente, qual seja, o Nível de Garantia de Segurança 2 (NGS2). De acordo com o Conselho Federal de Medicina, para que o documento médico emitido com a utilização de tecnologia tenha validade é necessário que o documento seja assinado digitalmente, e com Nível de Garantia de Segurança 2.

Porém, a validade de documentos com assinatura digital é regulamentada pela Medida Provisória nº 2.200-2/2001. De acordo com esta norma, o documento assinado eletronicamente com certificado digital (Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil) possui validade jurídica, ou seja, equivale ao documento assinado “fisicamente” pelo seu emissor. E esta condição é suficiente.

Mais do que isso, há lei federal disciplinando a prescrição e o atestado médico, qual seja, Lei nº 14.063/2020. Nos termos desta lei, os receituários de medicamentos sujeitos a controle especial e os atestados médicos em meio eletrônico, previstos em ato do Ministério da Saúde, somente serão válidos quando subscritos com assinatura eletrônica qualificada do profissional de saúde. Ou seja, a lei federal existente estabelece que basta a assinatura eletrônica qualificada para que o documento tenha validade. E a mesma Lei esclarece o que seja "assinatura eletrônica qualificada": a que utiliza certificado digital, nos termos do §1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 (art. 4º, inciso III da Lei 14.063/2020).

O CFM, como visto, acrescenta um novo elemento para a validade de um documento, qual seja, o Nível de Garantia de Segurança 2. Apesar de trazer esta informação, o CFM não explica na Resolução o que efetivamente seria este “Nível de Garantia de Segurança 2”, item a ser observado como condição de validade, além da assinatura eletrônica com certificado digital. O NGS2 pode estar associado ao prontuário eletrônico (Sistema de Registro Eletrônico em Saúde), mas não tem nenhuma relação com a validade jurídica de documento assinado eletronicamente com certificado digital.

Não deve haver relação entre a validade de um documento assinado eletronicamente com certificado digital e o sistema de prontuário eletrônico utilizado pelo médico/instituição de saúde. O documento médico assinado eletronicamente com certificado digital pelo profissional equivale ao documento assinado “fisicamente” pelo mesmo profissional, independentemente do prontuário por ele utilizado (em papel, informatizado, eletrônico ou digitalizado - https://www.portalabol.com.br/rbol/index.php/RBOL/article/view/253). A prevalecer a norma emanada do CFM, somente terão validade os documentos assinados eletronicamente com certificado digital em sistemas de registro eletrônico de saúde com Nível de Garantia de Segurança 2.

Novamente se faz necessária a abordagem da Resolução à luz da prática médica em perícia e assistência técnica pericial. O laudo pericial elaborado e emitido pelo perito ou o parecer do assistente técnico somente têm validade se assinado eletronicamente com certificado digital em um prontuário eletrônico? Estes profissionais sequer possuem relação médico-paciente com as pessoas envolvidas em seus atos profissionais!

Os sistemas utilizados pelo Poder Judiciário em cada um dos Tribunais possuem NGS2? É competência do CFM acrescentar um elemento de validade a um documento profissional?

A imposição de NGS2 para que o documento médico tenha validade é manifestamente ilegal, posto que contraria a legislação federal que regulamenta a matéria e está contida em norma hierarquicamente inferior à lei e, sobretudo, em norma elaborada por autarquia federal que não possui atribuição legal para tal regulamentação.

Assim, para que o documento médico emitido com utilização de tecnologia tenha validade jurídica a condição, salvo a superveniência de nova disciplina legal (lei federal) a respeito, é que haja assinatura eletrônica com certificado digital, não sendo exigível o NGS2 para esta finalidade.

Já no artigo 5º, o Conselho Federal de Medicina cria uma condição de existência legal para as empresas que prestam serviço de prescrição eletrônica. Diz a Resolução que o portal ou plataforma utilizada pelo médico para a emissão de prescrição eletrônica deve possuir inscrição no Conselho Regional de Medicina de onde estiver situada.

De plano já causa espanto tal situação, posto que jamais foi exigido que gráficas e/ou os Correios tivessem inscrição no Conselho Regional de Medicina. Ora, o portal ou plataforma desempenha, nos documentos eletrônicos, as mesmas atribuições da gráfica que produz os formulários de prescrição e os Correios, responsável pela entrega física da prescrição, quando enviada fisicamente ao paciente.

Mais do que isso, a obrigatoriedade de inscrição de pessoas físicas ou jurídicas em Conselhos Profissionais está prevista na Lei 6.839, de 1980. De acordo com esta lei, o registro de empresas e a anotação dos profissionais legalmente habilitados, delas encarregados, serão obrigatórios nas entidades competentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros (art. 1º).

O portal ou a plataforma de prescrição eletrônica somente estaria obrigada ao registro no CRM caso tivesse a prestação de serviço médico como uma de suas atividades. Não é porque desenvolve alguma atividade ligada à medicina que a empresa deve estar inscrita no CRM. Empresas que armazenam sites médicos não têm a necessidade de inscrição no CRM, por exemplo.

E a maior demonstração de que a obrigatoriedade é equivocada está contida na própria Resolução CFM 2.299/2021, mais precisamente no art. 6º, segundo o qual, o Conselho Federal de Medicina poderá oferecer gratuitamente o serviço de prescrição e elaboração de documentos médicos eletrônicos por meio do Portal de Prescrição Eletrônica.

O Conselho Federal de Medicina não pode desenvolver atividade de prestação de serviço médico, posto que, novamente, isso não foi estabelecido como sendo uma atribuição do CFM pela Lei 3.268/57.

A situação se revela ainda mais curiosa ao se imaginar a necessidade de inscrição do CFM em cada um dos Conselhos Regionais de Medicina, com indicação de um responsável técnico pelo CFM em cada um dos Estados e do Distrito Federal. E nem se alegue que o Presidente do CFM poderia figurar como tal responsável técnico, posto que, consoante norma do próprio CFM (Resolução nº 2.147/2016), ao médico somente é permitido o acúmulo da diretoria técnica em, no máximo, 2 pessoas jurídicas (art. 8º). Seriam necessários, portanto, no mínimo 14 responsáveis técnicos.

Na hipótese de se alegar que o CFM não exerceria diretamente a prática de elaboração e emissão de documentos médicos, dentre eles a prescrição, a situação se revela ainda mais ilegal e aterrorizante, na medida em que o CFM indicaria empresa em relação à qual deve, em última instância, decidir pela prática ou não de infração ética. Neste caso, todos os conselheiros federais estariam impedidos de participar do julgamento, ante a existência de relação contratual entre o CFM e a empresa investigada eticamente.

Portanto, para cumprir o disposto no art. 6º da Resolução CFM 2.299/2021, ou o CFM atuará de forma ilegal e, ainda assim, precisaria estar inscrito em todos os CRMs, ou ficaria impossibilitado de julgar eventual infração ética praticada pela empresa por ele contratada para o serviço de prescrição e elaboração de documentos médicos eletrônicos.

Ainda, o art. 9º impõe que os serviços de emissão eletrônica de documentos médicos devem respeitar as normas de publicidade médica. Como já dito anteriormente, somente devem respeito às normas de publicidade médica as empresas prestadoras de serviços médicos inscritas nos Conselhos Regionais de Medicina.

Considerando um laudo pericial ou um parecer de assistente técnico, qual seria a empresa responsável pela emissão eletrônica destes documentos médicos? A “Adobe” poderia ser considerada esta empresa? Ou seria o sistema do Tribunal? Consequentemente, o Adobe e o sistema do Tribunal devem estar inscritos no CRM? Devem seguir as normas de publicidade médica?

Há, aqui, mais um enorme equívoco do CFM, posto que confunde o documento médico com a emissão do documento médico. A gráfica que imprime o atestado ou a prescrição em papel não deve estar inscrita no CRM, tampouco deve seguir as normas de publicidade médica. De igual sorte, o sistema tecnológico utilizado pelo profissional para a emissão de documento médico não deve estar inscrito no CRM, nem estar obrigado às normas de publicidade médica emanadas pelo Conselho Federal de Medicina. O documento médico devem respeitar as normas éticas.

Analisando este dispositivo em conjunto com o art. 6º, chegar-se-ia à conclusão de que o CFM deve seguir normas de publicidade médica emanadas por ele mesmo. Entretanto, em nenhuma publicação do Conselho Federal de Medicina consta o seu responsável técnico! E é evidente que não consta, posto que o CFM não presta serviço médico, razão pela qual não há necessidade de sua inscrição em nenhum Conselho Regional de Medicina.

Mas, por outro lado, se o sistema que emite os documentos médicos eletrônicos precisa estar inscrito no CRM e o CFM poderá disponibilizar este sistema aos médicos, o CFM se equipara às empresas que devem estar inscritas no CRM. E, havendo a necessidade de inscrição, há a necessidade de indicação de responsável técnico. Logo, no site, nas redes sociais e em todos os documentos do CFM deveria constar o nome do responsável técnico do CFM, uma vez que, nesta situação criada pela Resolução 2.299/2021, quem presta serviço de elaboração e emissão de documento médico deve estar inscrito no CRM e seguir as regras de publicidade do CFM.

E, mais uma vez, a situação jurídica aberrante estaria instaurada: o CFM analisaria eventual recurso em processo ético que tem como Denunciado o responsável técnico do próprio CFM?

Em apertada síntese, portanto, a Resolução CFM 2.299/2021 traz normas desnecessárias, posto que já fixadas e disciplinadas por lei, bem como outras disposições que podem ser consideradas ilegais, uma vez que contrariam o ordenamento jurídico.